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domingo, 13 de janeiro de 2008

ANTÔNIO CONSELHEIRO E O MASSACRE DE CANUDOS

A versão oficial de toda guerra, que passa para os livros de história como o entendimento real e "verdadeiro" de um fato, é sempre aquela apresentada e analisada pela parte vencedora do conflito, sem que jamais os derrotados possam expor suas opiniões. A chamada Guerra de Canudos, Revolução de Canudos ou Insurreição de Canudos foi na verdade, assim como a Guerra do Paraguai (1865-1870), um massacre promovido pelo Exército Brasileiro.
Ilustração de Antônio Conselheiro
Entender o que aconteceu na pequena Canudos, localizada no interior do sertão nordestino brasileiro, ao norte do estado da Bahia, requer uma viagem no tempo para muito antes de 1896, ano em que teve início o conflito no qual, quase um ano depois, em outubro de 1897, mais de 25 mil humildes sertanejos haviam sido massacrados.

A história do massacre de Canudos começa com a história de vida de Antônio Conselheiro, ao redor de quem o pequeno arraial surgiu e cresceu.

Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, figura presente em todos os livros de História do Brasil, e apresentado geralmente como ignorante, traidor, fanático, arruaceiro e louco, nasceu no interior do Ceará, na pequena Quixeramobim, em 1830. Nos primeiros anos de sua vida, os pais do pequeno Antônio queriam que ele fosse padre quando crescesse, pois essa era a forma mais fácil de ascensão social naquele Nordeste miserável do século 19, porém, os rumos começaram a mudar quando, aos 6 anos, Antônio perdeu a mãe. Seu pai casou-se novamente menos de dois anos depois, e o menino, então com quase 8 anos, passou a ser espancado e maltratado pela madrasta. Antônio era uma criança acanhada, mesmo assim aprendeu latim, francês, geografia e aritmética. Mais tarde, definiria sua infância como um "período de dor".

Aos 25 anos, em 1855, perde o pai e passa a administrar uma pequena venda da família. Pára de estudar e esquece em definitivo as aspirações de tornar-se padre. Os negócios com o comércio não vão bem e Antônio é processado por não quitar algumas dívidas. Alguns historiadores dizem que as dificuldades financeiras eram fruto das ajudas dadas aos pobres já naquele tempo.

Em 1857, aos 27 anos, casa-se com sua bela prima e deixa de vez a vida de pequeno comerciante. Passa a trabalhar como professor primário, dando aulas para os filhos de comerciantes e fazendeiros da região onde vive. Por ter certo nível cultural, Antônio passa a atuar também como uma espécie de advogado prático dos pobres, buscando a solução de causas nos pequenos fóruns do interior.

Em 1861, ao chegar em casa, flagra a esposa com um sargento da força pública. Muito deprimido e abatido, Antônio sai sem rumo pelo interior do sertão. Conhece a escultora de imagens em barro e madeira Joana Imaginária e tem um filho com ela, mas deixa-os em 1865, para dedicar-se em definitivo a vida de andarilho, pregador e peregrino.

A figura dos beatos era comum naquele pobre sertão nordestino da segunda metade do século 19, já que poucas igrejas do árido interior possuíam padres. Os homens e mulheres que tivessem um pouco de cultura, o que era raro entre a população pobre do interior nordestino, acabavam tomando conta e liderando as atividades religiosas naquela região. Havia uma espécie de classe informal formada por sacerdotes não oficiais que eram inicialmente tolerados pela Igreja.

Os beatos rezavam, benziam e desempenhavam as atividades religiosas mais simples. Quando se destacavam pelas pregações e pelo número de seguidores a quem aconselhavam, eram classificados, numa espécie de hierarquia religiosa informal, como conselheiros. Antônio foi um deles.

Quando surgia caminhando nas planícies e nos vales da caatinga nordestina, com longa barba e cabelos grisalhos, abrigado pela veste típica dos padres capuchinhos, o povo pobre dizia: "Lá vem o Bom Jesus"! Bom Jesus era outro popular apelido de Antônio Conselheiro. Os sertanejos acreditavam que sua figura "bíblica" havia saído direto do Velho Testamento. Por onde passava, Conselheiro ia reerguendo as paredes caídas de igrejas e cemitérios.

O discurso de Antônio Conselheiro, embora católico, pregava que a Igreja estava sempre do lado dos fortes e ricos, deixando os humildes abandonados. As pregações também criticavam o acúmulo de terras improdutivas no interior do Nordeste. Antônio Conselheiro já era ouvido atentamente pelo povo e não podia ser acusado formalmente de nenhum crime. Sendo assim, sem poder ser incriminado por falar a verdade, foi preso em 1876, acusado pelo assassinato da mãe e da esposa. A primeira morta quando Antônio tinha 6 anos, e a segunda ainda vivia na ocasião.

Na prisão, Conselheiro foi agredido e torturado, sendo solto graças a protestos do povo. Depois de peregrinar por mais de 20 anos, num percurso à pé que abrangeu Pernambuco, Alagoas e Sergipe, Antônio Conselheiro decide viver com alguns seguidores em uma fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris, no norte da Bahia.

Localização do município de Canudos dentro do estado da Bahia

Nasce assim, em 1893, a experiência única de uma comunidade igualitária que tanto prosperou de forma independente no Brasil. O nome inicial dado por Conselheiro foi Belo Monte, mas depois da destruição total, o Exército Brasileiro deu o nome de Canudos à localidade, em alusão a abundância de bambus em forma de canudos que cresciam naquela região, e para exterminar também o carisma do nome original.

Canudos surgiu 5 anos após a libertação dos escravos e 4 anos após o fim do Império e a proclamação da República, num Brasil que ainda estava preso ao modelo de economia rural dos tempos da colonização, mas buscava integrar-se na nova ordem econômica mundial da industrialização capitalista.

A miséria no interior nordestino nunca foi tão intensa quanto nesse período recém-republicano. Foi nesse contexto que também surgiram os grupos de bandidos sociais, que deram origem ao movimento do Cangaço. Bandos armados assaltavam fazendas e pequenos povoados, pois, na ética dos desesperados, roubar para matar a fome não era crime. O mais famoso desses bandos foi o liderado por Virgulino Ferreira, o Lampião.

Outros desesperados, como escravos recém-libertos e grandes levas de sertanejos pobres, seguiam para Canudos, onde não havia cobrança de impostos e toda a produção das plantações e das criações de cabras era distribuída segundo as necessidades de cada família. Canudos cresceu rápido e em menos de uma década, já era a 3ª maior cidade da Bahia. Comercializava com Juazeiro e Salvador o excedente de suas produções.

Canudos chegou a ter 8 mil habitantes e só possuía uma rua, que começava na igreja onde Antônio Conselheiro pregava. Os casebres se amontoavam desordenadamente sobre as colinas próximas, fato usado por muitos para classificar a incapacidade e a ignorância dos sertanejos. Porém, na obra 'A Guerra Social de Canudos', o autor Edmundo Moniz afirma que a aparente disposição desordenada das casas tratava-se de uma estratégia de defesa, já que Antônio Conselheiro sabia que a República atacaria Canudos, e as casas desordenadas seriam trincheiras umas para as outras.

Ilustração da visão geral de Canudos, onde se observa a disposição desordenada das casas e o curso do rio Vaza-Barris, no fundo do relevo

Conselheiro também teve o cuidado de escolher um lugar para construir a comunidade onde o acesso só seria possível por caminhos difíceis pelo meio da caatinga, e próprios para embocadas dos seguidores conselheiristas.

Antônio Conselheiro ou "homem santo", como também era chamado, pregava contra a opressão da cobrança de impostos violenta da República. A oposição ao casamento civil e à separação entre as lideranças religiosa e política, características da recém-proclamada República, renderam a ele a acusação de ser um perigoso agitador monarquista e anti-republicano.

Canudos incomodava à Igreja Católica, que via seus fiéis debandarem para a comunidade de Antônio Conselheiro, e incomodava também os grandes fazendeiros latifundiários do sertão nordestino, que viam sua mão de obra explorada seguindo para o lugar onde não havia a opressão de um sistema que não diferia em nada dos moldes escravistas, extintos só no papel alguns anos antes.

Vista geral de Canudos. Todas as fotos históricas presentes nesta coluna foram feitas pelo fotógrafo Flávio de Barros, que teve o acesso exclusivo a Canudos em 1897, durante a 4ª ofensiva do Exército Brasileiro sobre o povoado. Fica registrado aqui também o agradecimento ao Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, localizado na Bahia, e que disponibiliza as históricas fotografias


Antônio Conselheiro propunha a edificação de um cristianismo primitivo no sertão da Bahia, pregando que a Independência do Brasil só servira para os ricos continuarem explorando os pobres, que a libertação dos escravos foi assistida por gente ainda dominada pelos donos de fazenda, e que a República era coisa de ateus e maçons, útil apenas para confirmar o poder dos coronéis em suas terras ociosas.

Essa reação do sertanejo oprimido, em torno da edificação de uma comunidade mística e religiosa, foi a única forma de reagir encontrada por aquela gente. Na impossibilidade de explicar e entender de forma teórica e política a opressão em que viviam, apegaram-se à religiosidade para mudar sua realidade.

A crença que uniu e edificou Canudos não foi uma alienação, foi uma arma de resistência do sertanejo pobre, dentro de suas possibilidades de entendimento e reação política. A manifestação religiosa tão particular ocorrida em Canudos foi a forma encontrada pelos oprimidos para promoverem um desprendimento ideológico daqueles que os dominavam.

Vista geral de Canudos por outro ângulo



Diante dessa realidade de resistência, faltava apenas um simples estopim para a classe dominante católica e burguesa da República massacrar Canudos. Se Canudos não fosse destruída, surgiriam outras comunidades religiosas como ela no sertão. O conflito começou por um motivo banal e injusto. Antônio Conselheiro e os habitantes de Canudos estavam construindo uma nova igreja na localidade, e precisavam de madeira para edificar a base do telhado. Compraram a madeira em Juazeiro e pagaram adiantado, com os recursos gerados pelo comércio de sua produção excedente.

Um juiz de Juazeiro expediu uma ordem para que a madeira não fosse entregue aos seguidores de Antônio Conselheiro. Logicamente, os homens de Canudos partiriam para Juazeiro a fim pegarem a madeira que lhes era de direito. Uma força policial local com pouco mais de 100 homens foi envida para Canudos a fim de reprimir os "desordeiros", mas foi aniquilada rapidamente no pequeno povoado de Uauá, localizado no meio do caminho de 100 quilômetros entre Juazeiro e Canudos.

A polícia local baiana enviou então um relatório pedindo reforço ao Governo Federal, no qual afirmava que um elemento perigoso pregava doutrinas subversivas contra o Estado republicano, convencendo as pessoas de que era o próprio "Espírito Santo".

Sendo assim, o Exército Brasileiro enviou uma seqüência de 4 expedições a Canudos. A 1ª possuía 300 soldados do Exército e 100 da polícia baiana, e foi derrotada em novembro de 1896. A 2ª tinha 600 soldados do Exército, 2 grandes canhões e 2 metralhadoras, mas também foi derrotada pelo milicianos de Canudos, em janeiro de 1897. A 3ª expedição foi organizada com 1300 homens, artilharia, cavalaria, médicos, engenheiros militares e ambulâncias, mas também foi vencida pelos combatentes conselheiristas, em março de 1897, deixando para trás as peças de artilharia, as armas e as munições. A notícia da maior derrota sofrida pelo Exército até então corria pelo Brasil e deixava a população aterrorizada, diante do triunfo da milícia de "fanáticos" religiosos e monarquistas de Canudos.

A grande dificuldade enfrentada pelas tropas do Exército Brasileiro foi devido ao fato dos soldados republicanos, embora bem armados, não estarem preparados para lutarem na caatinga sertaneja. As fardas de lã dos soldados do Exército eram sérios agravantes nos vários casos de insolação que afligia a tropa.

Soldados do Exército Brasileiro que atuaram no ataque contra Canudos



O Exército era treinado por instrutores belgas baseados em manuais franceses. Os peças de artilharia atolavam na areia fina do sertão, e a roupa vermelha dos oficiais, em contraste com o árido cenário nordestino, tornava-os alvos fáceis para os combatentes de Canudos.

A 4ª expedição do Exército virou uma questão de honra para o Governo Federal, que não aceitava a seqüência de derrotas sofridas para alguns jagunços do sertão. Em abril de 1897, foram enviados 4 mil soldados e 400 oficiais de todo o Brasil, sob o comando de 2 generais e o próprio Ministro da Guerra. Os combates duraram meses e foi preciso o envio de mais 5 mil soldados em julho de 1897. Só 2 meses depois, em setembro, o Exército conseguiu dominar a última saída de Canudos, cercando totalmente o lugar.

Soldados do Exército com um prisioneiro seguidor de Conselheiro. Todos os habitantes de Canudos, sem exceção, foram impiedosamente executados


Canudos não podia mais receber alimentos, água e reforços formados por sertanejos que chegavam de todo o Nordeste para lutar e defender o arraial do "homem santo" Antônio Conselheiro. Era outubro de 1897 e o Exército Brasileiro bombardeava furiosamente as ruínas de Canudos, onde muitos combatentes resistiam sem oferecer rendição. Mesmo os que se rendiam, eram degolados ou fuzilados. Nem mulheres, crianças e idosos foram poupados.


Mulheres, crianças e idosos prisioneiros. Os historiadores afirmam que ninguém foi poupado



Antônio Conselheiro já estava morto e enterrado desde 22 de setembro, vitimado após ter sido ferido pelos estilhaços de uma granada, e acometido por forte diarréia.

Na tarde de 5 de outubro de 1897, a última trincheira de Canudos ainda resistia. Eram apenas 4 defensores vivos: um negro, um caboclo, um velho e um jovem de 16 anos. O velho era o comandante daquela última resistência e, tendo acabado seus cartuchos de munição, saiu da trincheira trajando a veste azul da Companhia do Bom Jesus, com uma machadinha nas mãos, em direção aos soldados do Exército. Os combates terminavam, mas continuava o massacre.

Ruínas da igreja nova de Canudos...


e as ruínas da igreja velha de Santo Antônio

O Ministro da Guerra deu a ordem para que todos os prisioneiros fossem degolados e as casas que restaram de pé fossem explodidas e incendiadas, para que não sobrasse nenhuma lembrança da comunidade religiosa de Canudos.

Casas de Canudos em chamas ao fundo. Nada sobraria do antigo povoado



O cadáver de Antônio Conselheiro foi retirado da sepultura, sua cabeça foi cortada e enviada para estudos na Faculdade de Medicina de Salvador, pois a ciência da época, baseada nas teorias do determinismo europeu, acreditava que a "loucura", a "demência" e o "fanatismo" podiam ser explicados na mistura de raças e nas características faciais do considerado "mostro dos sertões".

Corpo de Antônio Conselheiro exumado pelo Exército. A cabeça foi arrancada para "estudos"

Logo após o fim do massacre, Canudos foi reconstruída e repovoada. A nova população teve que abandonar definitivamente o lugar em 1970, pois a ditadura brasileira resolveu represar o rio Vaza-Barris, a fim de originar o lago de um açude na região. Canudos, que havia acabado anteriormente em sangue, acabava outra vez submersa.

Evandir Teixeira

Canudos sob a água, com parte da ruína da igreja emersa



Em 1996, uma forte estiagem na região fez o açude secar por completo em vários pontos, deixando Canudos novamente amostra. Nessa ocasião, as ruínas da cidade puderam ser estudadas por arqueólogos, sendo possível um melhor entendimento de como era a vida nos tempos de Antônio Conselheiro, assim como os costumes a as atividades religiosas na época.

Em 1996, quando a seca rigorosa possibilitou estudos arqueológicos. Depois, a chuva inundou novamente o lugar



O jornal ‘O Estado de São Paulo’ enviou o escritor Euclides da Cunha para cobrir o massacre de Canudos em 1897. As reportagens deram origem ao clássico da literatura brasileira ‘Os Sertões’, publicado 5 anos depois do fim do massacre, em 1902.

Embora Euclides da Cunha compartilhasse da idéia científica influenciada pelo determinismo europeu, que considerava o mestiço brasileiro uma raça inferior, o autor também apresenta em ‘Os Sertões’ a análise do atraso da população do litoral, considerada teoricamente evoluída e detentora dos conhecimentos científicos da época, mas que foi incapaz de resistir ao regresso à barbárie para manter o controle sobre os dominados "inferiores".

O escritor e repórter do ‘O Estado de São Paulo’ concluiu que o massacre de Canudos foi um erro histórico. Para ele, no lugar de soldados, o governo republicano deveria ter enviado mestres-escolas para educar a população de Canudos, rumo ao progresso da civilização, e não abusar do poder ao coibir com a força, uma população que só precisava ter sido integrada dignamente ao Brasil.

A frase mais célebre de Euclides da Cunha, presente em ‘Os Sertões’ e considerada a mais famosa da língua portuguesa brasileira é: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte". Essa frase tem, sem dúvida, sua mais fiel representação real nas últimas linhas do final da obra ‘Os Sertões’: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam cinco mil soldados".

Cássio Ribeiro. E-mail: zzaapp@ig.com.br

domingo, 6 de janeiro de 2008

UM GIRO POR DENTRO DO RALI DAKAR

Era para ter sido escrito a partir do dia 5 de janeiro de 2008, sábado, mais um capítulo da história daquele que é o mais famoso e tradicional Rali do mundo. Porém, junto com as dunas, as pedras, os buracos, a dor, o medo, a fome, a sede, o calor de mais de 45 graus do dia e o frio da noite, que precisam ser superados durante os mais de 9 mil quilômetros a serem percorridos em pleno Deserto do Saara, um perigo a mais presente na competição 2008 do Rali Dakar, conhecido também como o "Rali da Morte", acabou fazendo a organização do evento cancelar aquela que seria a histórica 30ª edição do Rali.

Competidores descansam no intervalo entre duas etapas do Rali Dakar

O governo da França avisou ao diretor do Rali Dakar 2008, o francês Etienne Lavigne, que terroristas fizeram ameaças aos competidores do Rali, sem que pudessem ser especificadas as prováveis etapas da competição onde ocorreriam os ataques. Durante o trecho do Rali que corta o Deserto do Saara, no noroeste da África, os competidores de diversas nacionalidades ficam indefesos durante horas em seus carros, motos e caminhões, expostos e cercados por cenários formados por dunas em todos os 15 dias da competição em média.


Por horas durante o Rali, os participantes são presas fáceis...

para os fundamentalistas islâmicos, como nesse trecho dentro do leito de um rio seco no deserto

Apesar das ameaças terroristas, que até já ocorreram em anos anteriores, mas nunca ocasionaram o cancelamento da competição, o ponto fundamental que impediu a realização do Rali Dakar 2008 foi o assassinato de 4 turistas franceses no último dia 28 de dezembro na Mauritânia, que é um país localizado no noroeste da África e cujo deserto é cortado por grande parte do percurso do Rali.



Logo que cruza o Estreito de Gibraltar e entra na África, o percurso deriva para o Oeste a fim de evitar o território argelino, mas a passagem pela Mauritânia representa perigo iminente para os competidores atualmente

O assassinato dos 4 franceses naquela região foi atribuído ao grupo Islâmico Salafista Para Pregação e o Combate, que teve origem na Argélia e atua em todo o norte da África, além de ser ligado a organização Al-Qaeda de Osama Bin Laden, desde 2002.


Bandeira do Grupo Islâmico Salafista, braço armado da Al-Qaeda no norte da África

O 30º Rali Dakar 2008 teria início na cidade portuguesa de Lisboa, em frente ao Mosteiro dos Jerônimos, e terminaria em 20 de janeiro no oeste da África, na capital do Senegal, Dakar. Antes do cancelamento do Rali Dakar 2008, a organização do evento ainda pensou em uma prova mais curta, que terminasse no Marrocos; porém, o governo francês recomendou que o Rali nem fosse iniciado.

O diretor do Rali Dakar, Etienne Lavigne, já admitiu que a partir de 2009 o evento poderá ter seu percurso alterado, deixando definitivamente de passar pelo território do continente africano. Será uma mudança significativa no trajeto histórico do Rali, que surgiu de forma curiosa a partir da ocasião em que o francês Thierry Sabine, em 1977, ficou perdido no deserto do norte da África, e decidiu que o local seria ótimo para a realização de um Rali anual. A primeira edição foi realizada um ano depois, entre dezembro de 1978 e janeiro de 1979 — dos 170 participantes que saíram de Paris na edição inaugural, só 69 concluíram o Rali em Dakar.

A partir de então até a edição cancelada de 2008, o tradicional Rali, que é a maior e mais dura prova automobilística do mundo e reúne cerca de 500 veículos entre as categorias caminhão, carro e moto, nunca deixou de ser realizado.

Os acidentes são constantes nas edições do também chamado "Rali da Morte"


A areia fina das dunas do Saara, muitas vezes revela-se uma armadilha durantre os deslocamentos que chegam a ultrapassar os 150 Km/h

O evento ficou famoso em todo o mundo com o nome do trajeto inicial, Rali Paris-Dakar; mas ao longo dos anos, por razões políticas, de segurança e de patrocínio, sofreu alterações nos locais de início e término, chegando até a se estender de Dakar ao Egito, em algumas edições. A Argélia, por questões de instabilidade interna, acabou ficando definitivamente de fora do trajeto.


Piloto e navegador, que segue com um mapa estudando a melhor opção para cumprir cada etapa no menor tempo, devem estar entrosados como em uma dança. No deserto do Marrocos por exemplo, que é cheio de pedras de todos os tamanhos, um erro pode representar a despedida Rali, e muitas vezes da própria vida

Na edição cancelada de 2008, o Brasil seria representado por 10 competidores (4 em motos, 4 em carros e 2 em caminhões), cujo destaque é o experiente André Azevedo, que é assíduo participante da categoria caminhões do Rali Dakar desde 1999, ano em que estreou dando ao Brasil uma colocação no pódio, com a conquista 3º lugar. Em 2007, André Azevedo ficou na 5ª colocação geral da categoria caminhões.


André Azevedo, sinônimo de presença brasileira no Rali desde 1999...

e seu robusto caminhão da Equipe Tatra, fabricado na República Checa. O modelo é equipado com sistema para inflar os pneus em movimento, caso furem durante uma etapa no meio do Deserto do Saara

Uma outra faceta do Rali Dakar, muito criticada, é aquela observada pelos que analisam o evento como uma agressão ao pobre continente africano, repleto de fome e epidemias. O próprio título oficial do evento "Euromilhões Lisboa-Dakar" deixa claro um triste contraste expresso quando os carros, as motos e os caminhões das marcas líderes do mercado automobilístico mundial passam pelas vilas pobres do interior árido norte-africano e suas populações de humildes tuaregues.

Registro da chegada da edição 2007 do Euromilhões Lisboa-Dakar ...

Um triste contraste com a condição econômica e social das populações africanas

Quando os carros, as motos e os caminhões percorrem os 20 quilômetros da última etapa do Rali Dakar, junto ao Atlântico e já dentro do território do Senegal, na costa oeste africana, rumo à linha de chegada em Dakar, estão batidos, remendados e com o motor cansado, mas podem ser trocados.

Os últimos 20 quilômetros do Rali Dakar são na verdade uma festa, uma grande festa dos países ricos e líderes da economia mundial, representados por seus competidores que, mesmo exaustos, conseguiram percorrer os mais de 9 mil quilômetros do Deserto do Saara, vencendo o medo, o frio, a dor, o calor, a sede e a fome. Tudo meramente transitório. Deixam para trás toda uma realidade humana e social que não se repete só em períodos anuais, como uma festa, e nem pode ser subitamente cancelada.

Cássio Ribeiro. E-mail: zzaapp@ig.com.br