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sexta-feira, 25 de abril de 2008

ESCOTISMO: 100 ANOS SEMPRE ALERTA PELO MUNDO

Tarde de sábado nublada em uma praça de Guaratinguetá, no interior paulista. Um grupo de homens, mulheres e jovens, vestidos com uniforme cáqui, está reunido na forma de um círculo humano, em cujo interior, 12 crianças trajando uniforme azul escuro completam o cenário. Trata-se do início de mais uma reunião do Grupo Escoteiro Sarça Ardente, que é o grupo número 232 do estado de São Paulo.

Grupo Sarça Ardente, no início de mais uma reunião


A forma humana circular do início da reunião, assim como a disposição circular das barracas nos acampamentos escoteiros de todo o mundo, se repete há mais de 100 anos, desde agosto de 1907, quando o general inglês Robert Baden-Pawell, ou simplesmente B-P, como é chamado pelos escoteiros, reuniu um grupo de 21 jovens, uma criança e mais alguns auxiliares na pequena Ilha de Brownsea, que fica na costa da Inglaterra, no Canal da Mancha.


Primeiro acampamento escoteiro realizado por Baden-Powell, em 1907, ...

na pequena Ilha de Brownsea, perto do litoral inglês

Baden-Powell tinha 50 anos quando decidiu organizar o acampamento para os jovens, depois de já ter servido no exército inglês por 31 anos, onde adquiriu vasta experiência na vida ao ar livre, durante as campanhas de combate contra tribos das colônias inglesas na Índia e na África do Sul. O feito mais famoso de Baden-Powell durante a carreira militar foi a resistência ao cerco à cidade de Mafeking, na África do Sul, onde ficou sitiado com sua tropa por 217 dias, de outubro de 1899 até maio de 1900. Baden-Powell resistiu às forças do contingente superior dos inimigos africanos, até que as tropas inglesas conseguissem abrir caminho para socorrê-lo.

Baden-Powell organizou o primeiro acampamento escoteiro, em agosto 1907, baseado no pensamento de que a ocasião seria ideal para pôr em prática um método de atividades ao ar livre que contribuiria para a educação de jovens. B-P enviou então uma carta para alguns pais e mães conhecidos seus: "Me proponho realizar um acampamento com meninos selecionados, para que aprendam Escotismo durante uma semana, nas próximas férias de agosto"..."A alimentação, a preparação dos alimentos, os aspectos sanitários, etc., serão cuidadosamente supervisionados...", escreveu ele.


Baden-Powell e a saudação escoteira 'Sempre Alerta!'. Os dedos representam os três itens da Promessa Escoteira

O primeiro acampamento escoteiro fui um sucesso. Baden-Powell percebeu que as atividades ao ar livre exerciam forte atração sobre os jovens de todas as classes sociais, que aprendiam técnicas e, ao mesmo tempo, eram educados para uma vida futura como cidadãos dignos.

Sinais de pista ensinados aos escoteiros de todo o mundo, para serem usados como códigos informativos em ocasiões de atividades nos campos, florestas e montanhas. Alguns desses símbolos já eram usados por tribos indígenas milenares

Tomado por entusiasmo após o sucesso do primeiro acampamento, Baden-Powell realizou palestras sobre seu novo método educativo e escreveu, a partir de janeiro de 1908, seis fascículos quinzenais que logo foram reunidos e lançados em um livro, "Souting for Boys" (Escotismo para Rapazes). O livro popularizou o Escotismo por toda a Inglaterra e por diversos países do mundo. Na América do Sul, o Chile já tinha suas primeiras tropas escoteiras em 1908.


No Brasil, o Movimento Escoteiro chegava em 1910, mesmo ano em que Baden-Powell decidiu pedir afastamento do exército inglês para se dedicar exclusivamente ao Escotismo. B-P percebeu que poderia ser mais útil ao seu país instruindo a nova geração para uma boa cidadania, ao invés de preparar homens adultos para uma futura guerra.


Agora dedicado exclusivamente ao Escotismo, Baden-Powell fez uma viagem pelo mundo em 1912, para conhecer os grupos escoteiros de diversos países. Foi aí que surgiu a idéia de fazer do Movimento uma Fraternidade Mundial. Sendo assim, em 1920, os escoteiros de todo o mundo se reuniram em Londres para a primeira concentração internacional de escoteiros, chamada de Primeiro Jamboree Mundial. Na última noite do evento, Baden-Powell foi proclamado Escoteiro-Chefe-Mundial, diante de uma animada multidão de jovens de todo o mundo.



Foram realizados outros Jamborees mundiais na seqüência (1924 na Dinamarca, 1929 na Inglaterra, 1933 na Hungria e 1937 na Holanda). Além da organização dos Jamborees, B-P também fez longas viagens pelo mundo e manteve correspondência com dirigentes escoteiros de muitos países, no intuito de fortalecer os elos e os laços formadores da Fraternidade Mundial dos Escoteiros.


Baden Powell trabalhou intensamente pelas causas do Movimento Escoteiro até os 80 anos de idade, quando foi morar com sua esposa no Kenia, onde morreu aos 83 anos, em janeiro de 1941, rodeado por um cenário formado por quilômetros de florestas e montanhas com picos cobertos de neve.


O Símbolo dos escoteiros é a Flor-de-Lis, que representa a orientação para a direção certa, para o alto, mostrando o caminho para o cumprimento do dever e da ajuda ao próximo. As três folhas que formam a Flor-de-Liz também lembram os três itens da promessa escoteira, que são: "Prometo pela minha honra, fazer o melhor possível: 1 – Para cumprir meu dever para com Deus e a minha pátria, 2 – Para ajudar o próximo em todas as ocasiões e 3 – Para obedecer a lei do escoteiro."

A Flor-de-Liz é o símbolo do Escotismo em todo o mundo, e é entregue ao escoteiro como distintivo do uniforme no ato da Promessa Escoteira. A fim de distiguir as diferentes nacionalidades, cada país adota geralmente um emblema nacional sobre a Flor-de-Liz. No caso do Brasil, o símbolo escoteiro recebe o Selo da República, com o círculo de estrelas e o Cruzeiro do Sul no interior. Embaixo, ainda figuram o lema do Escotismo (Sempre Alerta!), e um nó, que representa a boa ação diária que cada escoteiro deve praticar, sem que haja recompensa em dinheiro por isso

Os itens da LEI do ESCOTEIRO são: 1 - O escoteiro tem uma só palavra e sua honra vale mais do que sua própria vida, 2 – O escoteiro é leal 3 – O escoteiro está sempre alerta para ajudar o próximo e praticar diariamente uma boa ação, 4 – O escoteiro é amigo de todos e irmão dos demais escoteiros, 5 – o escoteiro é cortês, 6 – O escoteiro é bom para com os animais e as plantas, 7 – O escoteiro é obediente e disciplinado, 8 – O escoteiro é alegre e sorri nas dificuldades, 9 – O escoteiro é econômico e respeita o bem alheio e 10 – O escoteiro é limpo de corpo e alma.

Na reunião do Grupo Escoteiro 232 SP (Sarça Ardente), em Guaratinguetá, era possível observar na prática todo esse clima cordial e ordeiro da conduta dos escoteiros. Alguns membros eram saudados pelo resto do grupo, por terem se destacado no último acampamento. Seguia-se o coro de "Bravo! Bravo! Bravíssimo!" e os homenageados respondiam: "Grato! Grato! Gratíssimo!" em alto e bom som, sempre cadenciado por uma salva de palmas escoteira, executada por todo o grupo.

Em determinado momento, os lobinhos, que são crianças entre 6 e 10 anos, se retiram caminhando enfileirados em direção a uma sala no interior da sede do Grupo Sarça Ardente, onde irão participar de atividades educativas, separados do resto do Grupo. As atividades dos lobinhos, quase sempre lúdicas, visam introduzir as crianças na prática escoteira.

No interior da sala, os lobinhos sentam-se e a chefe escoteira, chamada de "aquelá" por eles, começa indagando sobre a preferência do cardápio para o próximo acampamento. Quando a "aquelá" Mara fala em abóbora ou mandioca com carne, e chá de camomila, os lobinhos, como quase todas as crianças da mesma idade, não aprovam a idéia. No entanto, quando lhes é apresentada a alternativa de hamburguer com batatas fritas, a alegria é subitamente expressa num coro unânime de um ÊÊÊÊ! infantil cheio de vitalidade.

"Alcatéia" de lobinhos do Grupo Escoteiro 232 SP (Sarça Ardente)

Os lobinhos formam a classe do Escotismo que reúne crianças com idades entre 6 e 11 anos. Dos 11 aos 15, os já adolescentes são escoteiros. Dos 15 aos 18 anos, os jovens passam para o quadro sênior e, dos 18 aos 21 anos de idade, a atividade escoteira abrange a classe dos pioneiros, depois da qual, pode ser desempenhada a função de chefe escoteiro.

Para o chefe Charles, de 38 anos, que é escoteiro desde 1977 e também trabalha na Cadeia Pública de Guaratinguetá, o Escotismo é uma satisfação pessoal: "Se eu conseguir tomar conta e educar essas crianças hoje, não vou precisar tomar conta delas na Cadeia Pública mais adiante", diz o chefe Charles.

Chefe Charles à esquerda e, na seqüência, chefe Catarina, chefe Arnoldo e chefe Renê, um dos fundadores e idealizador do Grupo Escoteiro Sarça Ardente, que fica à Praça Esmeralda, nº 106, no Jardim Aeroporto, em Guaratinguetá / SP


Há 5 anos no Movimento Escoteiro, Larissa, de 11 anos, é uma das monitoras da Tropa El Shaday, do 232º Grupo Escoteiro do estado de SP

A semente inicial plantada pelo inglês Baden-Powell no acampamento da Ilha de Brownsea, em 1907, fecundou e floresceu pelo mundo completando seu primeiro Centenário em 2007. Calcula-se que 500 milhões de homens e mulheres já tenham prometido viver de acordo com a Lei e a Promessa Escoteira nesses 100 anos de existência da Organização Mundial do Movimento Escoteiro.

Hoje, são mais de 28 milhões de membros em 216 países e territórios, que formam a maior associação para a educação não formal de jovens no Mundo. Um imenso elo que faz a Fraternidade Mundial Escoteira parecer, em escala global, com os círculos humanos tão tradicionais nas reuniões dos escoteiros desde 1907, Sempre Alerta!
Cássio Ribeiro

sexta-feira, 18 de abril de 2008

RENATO RUSSO E A LEGIÃO URBANA

O que quase todos na casa dos quarenta, quase todos na casa dos trinta, e quase todo adolescente e pós-adolescente de hoje têm em comum? Talvez seja o fato de, ao ouvirem as músicas daquela que foi e ainda é a maior banda do rock brasileiro em todos os tempos, sentirem a sensação de que as letras da Legião Urbana se encaixam e se identificam no cotidiano sentimental geral das pessoas e, ao mesmo tempo, são compatíveis com a realidade emocional particular de cada um.

Músicas como ‘Será’, ‘Pais e Filhos’, ‘Tempo Perdido’, ‘Há Tempos’, ‘Faroeste Caboclo’, ‘Eduardo e Mônica’ e muitas outras atravessaram as décadas de 80, 90 e chegaram aos dias de hoje, quase 12 anos após o fim das atividades de Legião, como sucessos que ainda retratam com impressionante atualidade, nossa realidade emocional, social e política. São essas características das músicas da Legião Urbana que fazem da banda uma unanimidade que liga diversas gerações num gosto comum.

O autor de todo esse lirismo marcante expresso nas letras teria completado 48 anos no último dia 23 de março se estivesse vivo. Renato Manfredini Junior, o Renato Russo, nasceu no Rio de Janeiro, em 1960. Aos 7 anos, foi morar com a família em Nova Iorque, pois o pai, que era funcionário de um grande banco brasileiro, foi transferido para trabalhar na agência daquela cidade. Nos Estado Unidos, Renato teve estreito contato com a língua inglesa.

Dois momentos de Renato: no colo da mãe, dona Carmem, aos dois anos e ...

cuidando da nutrição já cedo
A família Manfredini voltou ao Brasil dois anos depois, em 1969, e foi morar na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Renato se destacava como excelente aluno na escola, mas sempre muito tímido e calado.


Renato segurando a placa da escola, durante a temporada nos Estados Unidos

De volta ao Brasil com a família, Renato e a irmã Tereza em frente a casa da Ilha do Governador, no Carnaval de 1969

Em 1973, Renato e a família vão morar na Asa Sul, em Brasília. Ao completar 15 anos, em 1975, os médicos descobrem que Renato Manfredini tem uma doença óssea chamada epifisiólise, que em Renato, praticamente dissolveu a cartilagem do osso que liga o fêmur à bacia.


Um registro da adolescência

Submetido a uma delicada cirurgia, Renato recebeu o implante de três pinos de platina na bacia, e teve que ficar seis meses na cama, praticamente sem movimentos, e mais um ano e meio, até os 17 anos, se locomovendo em cadeira de rodas, praticamente sem sair de casa. Nesta ocasião, Renato leu e ouviu muita música, despertando assim a pretensão de montar uma banda de rock. O nome "Russo", que virou sua marca artística, foi uma homenagem aos filósofos Jean-Jacques Rousseau e Bertrand Russell, cujas obras leu no período em que esteve entrevado por causa da doença óssea.

Renato só voltou a andar aos 18 anos, em 1978, mesmo ano em que o jovem Felipe Lemos, o Fê, então com 16 anos e filho de um professor da Universidade de Brasília, voltava com a família de uma temporada na Inglaterra para morar num conjunto com quatro prédios em Brasília, chamado de Colina.

Numa noite de 1978, Felipe Lemos vai com amigos a uma festa. A vitrola ecoa aos quatro ventos músicas das bandas Ramones, The Clash e Sex Pistols, as mesmas que o jovem costumava ouvir na Inglaterra. Interessado em conhecer o dono dos discos, Fê Lemos é apresentado, naquela festa estranha, a um sujeito esquisito vestido com camisa social, e que andava segurando um guarda-chuva numa mão e uma capanga na outra, Renato Russo.
Outro momento de Renato Russo na adolescência

Foi por causa dos discos de punk rock que Fê Lemos e Renato Russo ficaram amigos. Quase na mesma época, Renato Russo conheceu André Pretórius, que era filho de um diplomata da África do Sul, e andava vestido de punk pelas ruas de Brasília. Surgiu a idéia dos 3 montarem uma banda com Renato Russo no baixo, André Pretórius na guitarra e Fê Lemos na bateria; nascia a banda Aborto Elétrico.

A escolha do nome foi inspirada por um literal aborto elétrico ocorrido durante uma passeata em Brasília. A tropa de choque entrou em ação desferindo choques com as pontas dos cacetetes sobre os manifestantes. Uma moça grávida não resistiu às descargas elétricas e abortou no meio da rua, uma menina que se chamaria Fátima, e que acabou dando nome a uma música do Aborto Elétrico, que se tornou um dos maiores sucessos do grupo Capital Inicial posteriormente.

Renato Russo falou para a revista ShowBizz, em 1989, sobre a ocasião do aborto e sobre as reuniões da turma da Colina em Brasília:

ENTREVISTADOR - Falem um pouco mais da repressão.

RENATO RUSSO - Era tão louco, nem eles sabiam o que era. Implicavam com todo mundo. Era época da redemocratização. A Colina, que era nossa base bem no comecinho, era também a residência dos professores da UNB - gente da esquerda que não podia falar... E volta e meia vinham as joaninhas - não, nem joaninhas, era veraneio mesmo. Essa história de "Veraneio Vascaína" é por causa disso. Eles entravam na universidade, aquelas coisas de bater em estudante etc. O nome Aborto Elétrico é justamente porque eles inventaram, em 68, os cassetetes elétricos que davam choque. Numa dessas batidas, uma menina que estava grávida, nada haver com a história, levou uma tal daquelas cacetadas e perdeu a criança! Coisa de mau gosto! Então, Aborto Elétrico era o que representava a música da gente. Agora, a repressão existia em vários níveis, em todos os lugares. Tinha de se ter muito cuidado com o que se falava - não podia falar mal do governo, nada. Nem bzzzzzz. E era só verem um grupo de jovens juntos que vinham estragar, tipo desmancha prazer. Hoje ainda continua. Cada quatro quadras tem uma viatura especial, com telefone especial... Você viu o que aconteceu no show de Brasília, não? Lá é muito bravo mesmo. Mas a primeira vez que eu fui preso foi o seguinte: já tínhamos a turma punk e nessa época era meio perigoso, porque os boyzinhos começaram a dar porrada nos mais fraquinhos da turma. No André Müller e no Pretórius nuca batiam, porque eles eram enormes. Mas os garotinhos de treze anos, como o irmão do Zé Renato, usava brinco, pronto: vai lá e toma porrada! Eu sempre tentava apaziguar os ânimos. Dizia: "Não, gente, vamos explicar o que é que é. Quem sabe eles entendem." Nesse dia, eu, com minha roupa punk e toda a turma, falamos: "Vamos para outro lugar, não vamos ficar aqui." (isso foi em 81). Já estávamos indo embora quando chegou esta galera, de 15, 16, 17 anos, todos com aquele uniformezinho igual, sabe, roupa assim de jovem normal, boyzinho... E chegou o liderzinho, um cara "inteligente": "Por que, se vocês são brasileiros, ficam rabiscando a camiseta com essas coisas em inglês?" e eu explicando, tentando convencer: "Pô, vamos ficar todo mundo amigo. Olha, tenho um loló aqui. Vamos cheirar?" O cara que estava do lado dele era federal, e: "Mão pra cabeça!" E foi um teatro só. Ele pegou uma varetinha, com um chicote, e disse: "Na parede! Abre as pernas!" E os boyzinhos, claro, gritando: "Punk se fodeu! Punk se fodeu!" Uma coisa estúpida, porque a primeira coisa que o federal fez, foi jogar a garrafa de loló para os boyzinhos. E eles ficaram lá, cheirando. Eu fiquei tão puto com isso! É contra lei e tudo, mas foi aí que eu vi como era realmente a corrupção. Passei a noite no xadrez... A segunda vez, na festa do Estado, foi mais humilhante. Fora o que aconteceu na "Roconha". Nesta festa (dos Estados) estava lá eu - foi quando o John Lennon morreu - com os meus badges, meu cabelo colorido da Mônica, bêbado, falando para todo mundo: "Alê! Eu te amo! A vida é bela!" Perguntava o signo - nessa época eu lia Tarô, fazia mapa astral, um híbrido total. E de repente veio um cara e me deu um puta soco. Eu não me lembro direito, porque eu estava bêbado. Mas fui parar lá no porão da prisão. Mandaram eu tirar a roupa... horrível.

ENTREVISTADOR - Você falou em "Roconha"?

RENATO RUSSO - Roconha era o seguinte. Tinha uma galera com um sítio - acho que era filho de um médico. sei lá. Então fizeram três Roconhas - a primeira parece que foi um escândalo, o máximo, mas ninguém ficou sabendo. Eles abriam a fazenda, o pessoal chegava de carro e ficava ouvindo som: você arrumava uma menina, ficava na boa com ela, fumava unzinho... A segunda foi mais divulgada. Fizeram um convite com um mapinha numa sede, dizendo: "traga o seu". Bem, aí nós juntamos na casa do Fê, todo mundo gala, com correntes e tudo, fomos todos para a Roconha. Mas nem entramos! Já tinha policial para tudo quanto é parte - parecia até cena do Kojak, com cachorro e tudo. Já entramos com a mão na cabeça, uns cinqüenta jovens sentados naquele chão de verão que ficava uma poeira só. O que teve de vestido branco que se acabou nesse dia!

DADO VILLA LOBOS - E eles: "Quem é filho de militar, para cá. Os menores para lá."

RENATO RUSSO - E eles nos dividindo e a gente: "Não! Temos de ficar juntos." Foi uma coisa psicologicamente muito ruim. Mas quem sofreu mesmo foram menores. Abusaram mesmo! Os pais iam lá pegar as garotas e eles falavam: "Sua filha é uma piranha, andando com maconheiros!" Aquelas menininhas de 13 anos chorando, chorando, chorando. Foi horrível! Aí fizemos "Veraneio Vascaína".

O primeiro show do Aborto Elétrico foi instrumental, num bar brasiliense chamado Só Cana. André Pretórius quebrou a palheta e machucou a mão, mas continuou tocando com o sangue escorrendo. As pessoas aplaudiram o sacrifício do guitarrista que, depois da apresentação, foi embora servir no exército da África do Sul, deixando o Aborto Elétrico.

Com a prematura saída de Pretórius, Renato Russo assumiu a guitarra e o irmão de Fê Lemos, Flávio Lemos, passou a integrar o Aborto Elétrico como baixista. Nasciam músicas que ficariam famosas no cenário do rock brasileiro anos depois: "Que País é Este", "Veraneio Vascaína", "Conexão Amazônia", "Música Urbana" e muitas outras.

Terceiro show do Aborto Elétrico

Em 1981, o Aborto Elétrico fazia muitos shows em festas e festivais de colégios. Ico Ouro-Preto, irmão de Dinho do Capital Inicial, entrou para a banda como guitarrista, e Renato Russo assumiu a função de vocalista exclusivamente.


Os desentendimentos entre Renato Russo e o baterista Fê Lemos eram constantes. As divergências sobre a qualidade da música "Química", que se tornaria um dos maiores sucessos da Legião Urbana posteriormente, foi um dos motivos que ocasionou o fim do Aborto Elétrico, em 1982.


Fê Lemos e Flavio Lemos entraram para a banda Capital Inicial, que acabou herdando do Aborto Elétrico, as músicas ‘Fátima’, ‘Veraneio Vascaína’, ‘Ficção Científica’ e ‘Música Urbana’.

Renato Russo, que já trabalhava desde os 17 anos com jornalismo, rádio e aulas de inglês, continuou se apresentando como um "trovador solitário" nos bares de Brasília, onde os freqüentadores tinham o privilégio de ouvir o violão e a voz de Renato interpretando as canções ‘Química’, ‘Eu Sei’, ‘Faroeste Caboclo’ e ‘Eduardo e Mônica’, numa versão mais extensa que a gravada posteriormente pela Legião.

Renato como trovador solitário

Renato queria montar outra banda, e foi com o baterista Marcelo Bonfá, o guitarrista Eduardo Paraná e o tecladista Paulo Paulista que a lendária Legião Urbana teve início. A banda herdou várias músicas do Aborto Elétrico, entre as quais, fizeram sucesso ‘Química’, ‘Geração Coca-Cola’, ‘Que País é Este’, ‘Conexão Amazônica’, ‘Tédio Com um T Bem Grande Pra Você’ e ‘Ainda é Cedo’. A primeira apresentação do grupo foi na cidade mineira de Patos de Minas, em 5 de setembro de 1982, no festival Rock no Parque. Foi a única apresentação de Eduardo Paraná e Paulo Paulista, que deixaram a Legião Urbana logo depois.

O guitarrista Ico Ouro-Preto passou a integrar a Legião Urbana, porém, a falta de uma seqüência fixa de ensaios e o medo de palco o fizeram deixar a banda antes da primeira apresentação em público, que seria na Temporada de Rock Brasiliense.


Depois de uma incessante procura por um novo guitarrista, chegava Dado Villa-Lobos, que já tinha um grupo chamado Dado e o Reino Animal. Estava formada a Legião Urbana, com os integrantes que tanto ficou conhecida: Dado, Renato e Bonfá.

A famosa e inesquecível formação

Em julho 1983, a Legião faz um show no Circo Voador, no Rio de Janeiro. Após a apresentação, que foi um marco na história da banda, a Legião é convidada para assinar com a gravadora EMI. O baixista Renato Rocha, o Negrete, entra para a banda em 1984, quando começam as gravações do primeiro álbum.


O disco 1, Legião Urbana, é lançado em 1 de janeiro de 1985, e a música ‘Ainda é Cedo’ é a primeira a ser tocada nas rádios FM de norte a sul do Brasil. As músicas ‘Será’ e ‘Por Enquanto’ são outros grandes sucessos do primeiro trabalho da Legião.

A nova formação de 1984, com o baixista Renato Rocha

Ainda em 1985, começam as gravações do segundo disco, que teria o nome "Mitologia e Intuição" e seria um álbum duplo, mas, como a gravadora não concordou, o trabalho foi lançado só com um disco, em 1986, sob o título "Dois", que é a segunda marca de maior venda da Legião, com 1,2 milhão de cópias. As músicas ‘Tempo Perdido’, ‘Índios’, ‘Quase sem Querer’ e ‘Eduardo e Mônica’ são os grandes sucessos desse segundo trabalho da Legião. Nessa época, a banda quase acabou.


Passada a fase de quase dissolução do grupo, começam as gravações do terceiro disco, Que País é Este, que foi lançado em 1987 e é o disco da Legião considerado mais punk , já que das 9 músicas do trabalho, 7 eram da antiga banda Aborto Elétrico.

Durante a turnê de divulgação do disco Que País é Este, um show realizado no estádio Mané Garrincha, em Brasília, em junho de 1988, acabou em imensa confusão generalizada. A apresentação começou com atraso, e Renato Russo estava bem humorado no palco, fazendo brincadeiras com a platéia.

Na quarta música, ‘Conexão Amazônica’, um integrante da platéia passou pelos seguranças e subiu no palco. Agarrou Renato Russo pelo pescoço, como que querendo estrangulá-lo. O vocalista revidou com golpes de microfone na cabeça do agressor, que foi contido pelos seguranças e retirado do palco.

Momento em que Renato Russo é agarrado pelo pescoço durante o show em Brasília

O show continuou e uma bomba foi jogada no palco. A Legião Urbana abandonou a apresentação antes do fim e o público ficou furioso. Outras bombas foram jogas no palco e teve início um quebra-quebra generalizado no estádio. Em meio ao caos, o saldo foi de 385 atendimentos médicos. O governo do Distrito Federal moveu um processo contra a Legião Urbana.

O tumulto no estádio Mané Garrincha, em 1988

Renato Russo não gostava das apresentações ao vivo, principalmente com a presença de grandes platéias, e era contra o trocadilho com o nome da banda (Religião Urbana) feito pelos fãs.


No final de 1988, o baixista Renato Rocha sai da Legião, depois de desentendimentos com os outros integrantes. Começam as gravações do quarto disco, As Quatro Estações, nas quais Renato Russo e Dado Villa-Lobos se revezaram no baixo. O trabalho, com a marca das 1,7 milhão de cópias vendidas, representa o maior sucesso da banda, e é considerado o melhor disco do grupo. Das 11 músicas, 9 fizeram sucesso nas rádios.

A banda novamente sem Renato Rocha e ...

num registro da década de 90


O álbum foi lançado em 1989, mesmo ano em que Renato Russo descobriu ser portador do vírus da AIDS, em pleno auge da carreira. O disco aborda temas como a própria AIDS, na música ‘Feedback Song for a Dying Friend’, o homossexualismo, em ‘Meninos e Meninas’, e ainda expressa a tradicional crítica tão característica nos trabalhos da Legião, na música ‘1965 Duas Tribos’.


O quinto disco ‘V’ foi lançado em novembro de 1991 e é bem melancólico, pois foi produzido na época em que Renato tinha descoberto ser portador do HIV, além de passar por problemas no relacionamento amoroso, e com o alcoolismo. Os destaques do disco ‘V’ foram a crítica social ‘Teatro dos Vampiros’ e a melancólica ‘Vento no Litoral’. Para muitos fãs da banda, o disco é a grande obra prima da Legião Urbana. A turnê de divulgação do trabalho teve que ser interrompida em 1992, quando a já frágil saúde de Renato Russo apresentou complicações.


O sexto disco, O Descobrimento do Brasil, foi lançado em dezembro de 1993. As músicas falam de esperança e despedida, pois marcam a fase em que Renato tinha iniciado um tratamento contra a dependência química. O disco foi um dos que menos tocou nas rádios.


No início de 1996, piora o estado de saúde de Renato Russo, e o cantor entra em depressão profunda. As gravações do sétimo disco, A Tempestade ou o Livro dos Dias, é interrompida várias vezes e dura seis meses. O disco foi lançado em 20 de setembro de 1996, e não possui agradecimentos e nem a tradicional frase presente em quase todos os discos da Legião Urbana: Legio Omnia Vincit (Legião Urbana a tudo vence). Renato recusou-se a tirar fotos para o disco, cujas letras são uma espécie de carta de despedida aos fãs. As Fotos para o encarte foram produzidas perto do lançamento, com exceção da de Renato Russo, que foi uma fotografia antiga reaproveitada.

A foto do disco 'A Tempestade': montagem com uma imagem antiga de Renato Russo


Ao fim das gravações de ‘A Tempestade’, em junho de 1996, Renato se isolou em seu apartamento, em Ipanema, no Rio de Janeiro, muito debilitado por uma forte pneumonia.

No dia 11 de outubro de 1996, pesando 45 quilos, morria Renato Russo, um dos maiores letristas e cantores do rock brasileiro. Seu corpo foi cremado no dia seguinte, no Cemitério do Caju, e as cinzas jogadas no jardim do sítio do paisagista Roberto Burle Marx. Onze Dias depois da morte de Renato, em 22 de outubro, Dado e Bonfá anunciavam o fim da Legião Urbana.


Após a morte de Renato Russo, foram lançados o Acústico MTV Legião Urbana, em 1999, e mais 4 discos com gravações anteriores a 1996, além da coletânea Música para Acampamentos, lançada em 1992. Existem ainda 8 discos solo de Renato Russo.

Renato deixou um filho, Giuliano Manfredini, que hoje tem 19 anos e mora com os avós paternos em Brasília. O rapaz foi fruto de uma rápida relação entre o cantor e uma fã que, segundo os pais de Renato Russo, morreu num acidente de carro, em 1990.

Com o filho Giuliano Manfredini

O filho de Renato Russo em foto de 2006, aos 17 anos: guitarra como hobby e planos de estudar Direito


O veterano cineasta Antônio Carlos da Fontoura está dirigindo um filme Sobre a Legião Urbana, "Somos Tão Jovens", que tem o lançamento previsto para o final de 2008, ou no decorrer de 2009.


A Legião Urbana ainda é o terceiro maior grupo musical da gravadora EMI em venda de discos por catálogo em todo o mundo hoje em dia. São 13 discos que ultrapassam as 19 milhões de cópias vendidas, o que dá uma média de cerca de 200 mil cópias por mês. Uma marca que, sem dúvida, dá à Legião Urbana do eterno trovador solitário Renato Russo, o título de maior banda brasileira de rock em todos os tempos.

Cássio Ribeiro

Críticas e sugestões: e-mail zzaapp@ig.com.br e orkut http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=18423333339962056517

sexta-feira, 11 de abril de 2008

ECOS E FLASHS DOS ANOS DE CHUMBO II

João Goulart já estava fora da presidência do Brasil no dia 1º de abril de 1964. O cargo foi assumido pelo líder da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, mas para o golpe militar ficar "completo" e fazer jus ao nome, era preciso preencher a presidência da República com um general. Uma semana depois, o comando do golpe decretou o primeiro de uma série de atos institucionais que seriam os principais instrumentos de repressão e imposição da ditadura militar brasileira.


O Ato Institucional Número 1 (AI-1) cerceou o direito do povo votar para eleger o novo presidente. Coube ao Congresso Nacional, coagido é claro, escolher no dia 15 de abril de 1964, o chefe do estado-maior do Exército, general Castello Branco, para ocupar o lugar que João Goulart deixou ao ser deposto. No mesmo "pacote" de medidas do (AI 1), ocorreram cassações de mandato e o fechamento de instituições consideradas "subversivas", como o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), as Ligas Camponesas e a UNE (União Nacional dos Estudantes). Os líderes dessas organizações foram presos e mandados para o exílio.

Curiosamente, o ex-presidente Juscelino Kubitskchek, que governou o Brasil entre 1956 e 1961, apoiou a escolha de Castello Branco para a presidência. Por ter promovido Castello ao posto de general-de-divisão quando governava o Brasil, Juscelino acreditava que o general o apoiaria nas eleições presidenciais que estavam previstas para 1965. Porém, dois meses depois de ser escolhido como novo presidente, Castello Branco cassou os direitos políticos de Juscelino Kubitskchek, que foram suspensos por 10 anos.
General Castello Branco: primeiro presidente da ditadura militar

O mandato do general Castello Branco deveria durar de 15 de abril de 1964 até 20 de janeiro de 1966, mas foi estendido até 15 de março de 1967. Estava garantido assim, o poder nas mãos da chamada linha dura, que defendia a manutenção inabalável das características da "revolução", além de acabar com qualquer vestígio remanescente da ideologia do regime democrático deposto.

Em 27 de outubro de 1965, foi promulgado o Ato Institucional número 2 (AI-2), que deu poderes excepcionais ao presidente, como cassar mandatos políticos e decretar estado de sítio sem autorização do congresso. Alem disso, o AI-2 acabou com os partidos políticos existentes e formalizou o modelo de eleição indireta para presidente, sem participação do povo na escolha. No lugar dos antigos partidos, nasceram apenas dois com a permissão da ditadura militar: A Arena (Aliança Renovadora Nacional), que apoiava o governo, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), de oposição à ditadura.

No dia 3 de outubro de 1966, foi realizada eleição indireta no Congresso Nacional para a escolha do sucessor de Castello Branco. Sem a presença de nenhum integrante do MDB, que boicotou a escolha já definida antes mesmo da votação, os representantes da ARENA elegeram o general Costa e Silva como novo presidente do Brasil.

Costa e Silva: segundo general-presidente, que pôs em vigor o AI-5

Costa e Silva assumiu em 15 de março de 1967, ano em que também entrou em vigor uma nova Constituição, na qual figurava a Lei de Segurança Nacional e a Lei de Imprensa, além da garantia de poderes praticamente ilimitados ao novo presidente. Com isso, a oposição passou a questionar a Constituição, que afirmava ser a "formalização da ditadura".


Surgiram então vários protestos em diversas partes do Brasil. O Centro da cidade do Rio de Janeiro foi o cenário de vários desses protestos. Na tarde de 28 de março de 1968, policiais militares foram chamados para reprimir um protesto de estudantes perto do aeroporto Santos Dumont. Os manifestantes reagiram com pedradas. No meio da confusão generalizada, o estudante Edson Luiz de Lima Souto foi baleado no peito por um tiro disparado por um dos policiais que agiam contra os manifestantes.


O corpo de Edson Luiz foi levado para a Câmara dos Vereadores e colocado sobre uma mesa. 50 mil pessoas acompanharam o enterro no dia seguinte. No dia 4 de abril de 1968, depois de uma missa em memória do estudante morto, foi organizada a chamada passeata dos Cem Mil, que foi liderada por personalidades como Chico Buarque, Tonia Carrero e Clarice Lispector.


Passeata dos Cem Mil: as manifestações ...

e a resistência contra o regime acabaram desencadeando o aumento da violência por parte da repressão

Na mesma proporção da grandiosa passeata dos Cem Mil, crescia a violência policial do regime. Tornaram-se rotina as invasões de universidades e as prisões de estudantes. Em outubro de 1968, foi organizado um congresso para a reestruturação da extinta União Nacional do Estudantes (UNE). Porém, a repressão mostrou seu poder outra vez ao acabar com o congresso, prendendo seus participantes.

Qualquer manifestação contrária ao regime significava espancamento e prisão

O clima de instabilidade pública levou a linha dura da ditadura ao ponto de optar pelas articulações de atitudes repressivas extremas, expressas, por exemplo, pela atitude do brigadeiro João Paulo Burnier de tentar transformar o Para-Sar, que é uma instituição da Aeronáutica responsável por salvamentos e resgates, num instrumento terrorista para eliminar pessoas contrárias ao regime militar.


A esquerda também se organizava, representada pela ala radical do Movimento Estudantil. Apesar de o Partido Comunista Brasileiro ter sido contra a luta armada, surgiram diversas organizações de resistência.



Em setembro de 1968, o deputado federal Márcio Moreira Alves, do MDB, fez um discurso pedindo ao povo que não fosse às festividades do Dia da Independência, num ato de protesto ao regime militar. Ofendidos, os militares pediram ao governo para processar o deputado, porém, o pedido foi negado pelo congresso, em 12 de dezembro de 1968. No dia seguinte, era entregue ao Conselho Nacional de Segurança, o texto do Ato Institucional número 5 (AI-5), que é considerado o golpe dentro do golpe.


No AI-5, o Congresso Nacional foi dissolvido e posto em recesso por tempo indeterminado. A liberdade de qualquer pessoa podia ser vigiada, havia a proibição de determinados lugares serem freqüentados, a suspensão de direitos políticos, a proibição de qualquer direito público ou privado. Ir e vir perdeu o sentido prático. Toda e qualquer manifestação de oposição ao regime estava severamente proibida. A imunidade parlamentar foi extinta, e entraram em vigor a prisão perpétua e a pena de morte.




A prática da tortura e do assassinato de opositores foi regulamentada e institucionalizada. O Exército criou a Operação Bandeirante (Oban), chamada depois pelo temido nome de DOI-Codi, localizada na rua Tutóia, em São Paulo. No Rio de Janeiro, o endereço das torturas e dos assassinatos ficava no quartel da Polícia do Exército (PE), à rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Militares do Exército e policiais comuns se uniam para a prática da tortura, sendo pendurando suas vítimas no pau-de-arara, sendo desferindo-lhes potentes choques por todo o corpo, incluindo regiões genitais.


O general Emílio Garrastazu Médici assumiu a presidência em 30 de outubro de 1969, num cenário em que não havia mais as manifestações públicas estudantis, e nem a oposição dos políticos do MDB. A oposição ao regime militar, seja radical ou moderada, estava severa e totalmente proibida.


Na contra mão do radicalismo das torturas e proibições ocorridas a partir do AI-5, surgiram organizações de guerrilha da esquerda, cuja prática da luta armada, ou sua tentativa, foi a principal característica. Sob influência do romantismo da revolução cubana (1959), que tangia a figura do guerrilheiro com uma aura mística, surgiram as primeiras organizações brasileiras de guerrilha urbana: A ALN (Aliança Libertadora Nacional), liderada por Carlos Marighela, o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), dia da morte de Che Guevara na Bolívia, e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), liderada pelo ex-capitão do Exército, Carlos Lamarca. Para essas organizações, quase totalmente formadas por jovens estudantes, a luta armada era a única forma de derrubar a ditadura militar.

Carlos Lamarca ainda como capitão do Exércido, dando instruções de tiro para funcionárias bancárias. Curiosamente, a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), liderada por Lamarca, executaria posteriormente assaltos bancários para financiar suas ações de combate armado à ditadura militar. Lamarca também desviava fuzis do Exército Brasileiro para serem usados nas atividades de guerrilha da VPR

Os grandes erros dessas instituições foram a fragmentação das forças, sem uma unidade e um comando nacional forte, além da falta de experiência de seus integrantes com as armas de fogo, tão familiares e usadas de forma costumeira pelos integrantes da ditadura militar e seus soldados defensores.



A principal ação da guerrilha urbana foi o seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, realizado em 1969, pela Aliança Libertadora Nacional (ALN) e pelo Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8). O embaixador foi trocado pela soltura de presos políticos, relacionados numa lista publicada nos veículos de comunicação da época.


A incisiva violência da ditadura militar foi o bastante para acabar com a luta armada contra o regime. Os chefes das organizações revolucionárias foram caçados e mortos um a um. Carlos Marighela foi eliminado em 1969 e, em setembro de 1971, foi morto no sertão baiano o último líder guerrilheiro de expressão nacional, Carlos Lamarca.

Para o deputado Fernando Gabeira, que integrava o MR-8 e participou da ação de seqüestro do embaixador norte-americano, a concentração das organizações armadas no meio urbano foi um erro:


"A revolução chinesa, que influenciou a guerrilha do Araguaia, via no camponês um sujeito revolucionário e propunha o cerco das cidades pelo campo. O correto, então, era sacudir o interior do país, formar uma autêntico exército revolucionário, que cercaria as cidades. Estas, envoltas em sua crise, e com a ajuda de pequenas insurreições, acabariam caindo de maduras.


A esquerda brasileira era, na sua esmagadora maioria, composta de quadros urbanos. Sua grande e quase impossível tarefa era instalar-se no interior, adaptar-se ao terreno e conquistar corações e mentes. Algumas ações urbanas foram realizadas com êxito, mas a passagem mesmo da cidade para o campo, que era o sonho de muitos, nunca se consumou de todo.



Talvez seja por isso que um documento da época tenha concluído, com entusiasmo religioso, que a morte de Carlos Lamarca no interior da Bahia tinha um aspecto positivo: pelo menos já estamos morrendo no campo", Disse Gabeira.


Outra ação característica da ditadura brasileira após o AI-5 foi a censura imposta aos veículos de comunicação. Em toda redação de jornal era comum a figura do censor, que trabalhava para a repressão, e analisava cada matéria antes da publicação da edição do dia seguinte. Muitas verdades não podiam sair e, jornais como O Estado de São Paulo publicavam receitas nos lugares das matérias censuradas, como forma de protesto diante das proibições que ceifavam a liberdade de imprensa e o dever de publicação da verdade.

Receitas de doces e salgados nos lugares das matérias censuradas


Ainda em 1968, numa famosa e inesquecível primeira página do Jornal do Brasil, o editor Alberto Dines usou um certo jogo de cintura para não chamar a atenção dos censores ainda inexperientes. O espaço dedicado às informações do clima na primeira página apresentou turbulências e temporais de bom tamanho como previsão do tempo.


Outros jornais da época publicavam figuras de monstros nos lugares das páginas que deveriam ter sido ocupados por matérias censuradas. Peças de teatro, músicas, filmes e todos os tipos de manifestações culturais sofreram intensa censura nos anos de chumbo. O filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", do cineasta Bruno Barreto, foi acusado de fazer parte de uma estratégia comunista para abalar os costumes morais da sociedade e da família brasileira.


No campo econômico, político e social, a ditadura militar brasileira foi caracterizada pela exclusão da maioria. A má distribuição de renda e sua concentração nas mãos de poucos foi o retrato administrativo da ditadura. O golpe militar de 1964 e as administrações posteriores da ditadura foram um ajuste político e econômico do Brasil no jogo dos novos interesses do capitalismo internacional.


Isso é bem caracterizado pela escolha dos primeiros ministros da área econômica da ditadura militar, todos eles vinculados ao capital internacional ou às empresas multinacionais: Roberto Campos e Otávio Golveia de Bulhões, respectivamente ministros do Planejamento e da Fazenda do governo Castello Branco por exemplo.


As medidas adotadas pelos ministros de Castello Branco foram tomadas como se no Brasil houvesse apenas grandes empresas. As pequenas e médias, geralmente de propriedade de brasileiros, quebraram economicamente ou se mantiveram com extrema dificuldade.


Para os trabalhadores, o FGTS (Fundo de Garantia Sobre Tempo de Serviço) substituiu a estabilidade no emprego que era adquirida por um trabalhador depois de dez anos trabalhando no mesmo lugar. O FGTS promoveu a "rotatividade da mão de obra", onde os mecanismos de dispensa de trabalhadores e a contratação de outros com salários menores foi facilitada.


O chamado "milagre econômico" da ditadura militar foi baseado no aumento vertiginoso da dívida externa para a obtenção de tecnologia estrangeira, e na concentração desigual para promover o consumo de produtos industrializados.


Numa comparação do aumento da dívida externa entre 1940 e 1964, que passou de 2 para 2,5 bilhões de dólares, num crescimento de 25%, é alarmante o aumento da mesma dívida verificado entre 1964 e 1978, que passou de 2,5 para 40 bilhões de dólares, num crescimento de 1500%.

Rodovia Transamazônica: faraônico projeto dos militares que ficou famoso por ligar o nada ao lugar nenhum

Já o mercado de consumo dos produtos industrializados produzidos no Brasil (televisões, rádios, geladeiras e automóveis) era formado por cerca de 5 milhões de pessoas de altíssima renda (a chamada elite burguesa), e mais 15 milhões de pessoas que puderam participar do "consumismo" mediante extremo sacrifício, graças à expansão do crédito ao consumidor. Esse mercado de consumo excluiu o restante da população, cerca de 80 milhões de brasileiros das classes menos favorecidas.


O modelo econômico da ditadura militar brasileira pode ser definido então como uma "industrialização excludente" que endividou o Brasil no exterior de forma nunca antes observada na história do País.


O general Ernesto Geisel assumiu a presidência em 15 de março de 1974, época em que o "milagre econômico" da ditadura entrou em declínio devido aos esgotamentos internos dos limites de crescimento, e às mudanças do mercado internacional. A crise econômica do regime se somou às pressões pela abertura política e pela anistia aos exilados no exterior. Um triste fato foi marcante na guinada que levou o Brasil, de forma lenta e gradativa é claro, de volta aos moldes democráticos de liberdade.


O jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, então diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi preso e levado às masmorras de tortura do DOI-Codi, na Rua Tutóia, em São Paulo, onde foi cruelmente assassinado sob acusações de ser militante comunista, e porque o telejornal da TV Cultura era o único que veiculava matérias com assuntos verdadeiros sobre os fracassos econômicos e sociais da ditadura militar.


O comandante do II Exército, general Ednardo D’ávilla Mello, representante da linha dura, divulgou uma nota um dia após a morte de Vlado, em 26 de outubro de 1975, afirmando que o jornalista havia se suicidado. Numa das fotos da cena da morte, publicada posteriormente, o corpo enforcado encontra-se de joelhos, indício que reforçou a comprovação de uma suposta armação da cena do suicídio, depois que Vlado foi assassinado durante as sessões de tortura.


O cinto usado no suposto "enforcamento suicida" não podia ser portado por nenhum prisioneiro do DOI-Codi. Foram observadas também duas marcas de enforcamento, o que remete à hipótese mais provável de estrangulamento.

Dois momentos de Vlado no DOI-Codi: primeiro atordoado pela humilhação e pela tortura ...

e no suposto "enforcamento suicida"

O quinto e último presidente da ditadura militar, general João Baptista Figueiredo, assumiu a Presidência em 15 de março de 1979 e, até 15 de março de 1985, pôs em prática a lenta conclusão da abertura política iniciada pelo general Geisel, no governo anterior.

General João Baptista Figueiredo

Figueiredo teve que enfrentar o grupo de militares da linha dura, que se opunham ao processo de abertura. Esses militares executaram o chamado "terrorismo de direita", a fim de culpar uma suposta esquerda perigosa, que ameaçaria tomar o poder em caso de abertura. Esses militares da linha dura também temiam revanchismo contra eles, depois que o Estado de direito e a democracia fossem restaurados no Brasil.


Os atos terroristas tiveram início em 1980, quando em São Paulo e Minas Gerais bancas de jornal e revista foram incendiadas. Em julho de 1980, durante a visita do papa João Paulo II ao Brasil, O jurista Dalmo Dallari, que discursaria na presença do papa, foi seqüestrado e espancado por desconhecidos.


Em 30 de abril de 1981, ocorreu a mais violenta ação terrorista da direita. Enquanto 20 mil pessoas assistiam quietas a um show musical promovido pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), uma potente bomba detonou no estacionamento, sobre o colo do sargento do Exército, Guilherme Pereira do Rosário, que morreu na hora. O capitão Wilson Machado, que dirigia o automóvel Puma de chapa "fria" em que ambos se encontravam, foi gravemente ferido mas sobreviveu. Uma segunda bomba foi colocada na casa de força do estacionamento, mas não explodiu.

O carro em que os dois militares estavam ficou completamente destruído, mas o atentado do Rio Centro jamais foi totalmente esclarecido

Apesar da notória evidência de que os militares vitimados pela bomba eram os terroristas, um relatório oficial divulgado pelo Exército apresentou os dois como vítimas de terroristas desconhecidos. O caso foi encerrado sem que os responsáveis jamais fossem punidos.


Em 1984, a campanha pelas eleições diretas para a escolha do novo presidente reuniu 1 milhão de pessoas no dia 10 de abril, no Rio de Janeiro, e 1 milhão de pessoas em 16 de abril, em São Paulo. Toda essa mobilização era em prol da aprovação da emenda Dante de Oliveira pelo Congresso, que restabeleceria a eleição direta para presidente da República.

1 milhão de pessoas reunidas na Candelária, no Rio de Janeiro, em 1984, durante o Comício das Diretas

Em 25 de abril de 1984, o PDS, presidido por José Sarney, foi fiel à ditadura e a emenda Dante de Oliveira acabou rejeitada pelo Congresso Nacional. Em novembro de 1984, a eleição indireta para presidente, realizada por meio de votação interna no Colégio Eleitoral, escolheu o civil Tancredo Neves, do PMDB, como novo presidente do Brasil. Tancredo derrotou o candidato do PDS, Paulo Maluf, na disputa. Em 14 de março de 1985, um dia antes de sua posse, Tancredo foi submetido a uma operação às pressas no Hospital de Base de Brasília. Complicações se sucederam e o presidente foi operado 7 vezes. Depois de 39 dias internado, Tancredo Neves faleceu em 21 de abril de 1985.

Tancredo Neves



José Sarney

Ironicamente, a "Nova" República, como Tancredo Neves chamou o período que teria início com seu mandato, acabou tendo o vice de Tancredo, José Sarney, como seu primeiro presidente. O mesmo Sarney que liderou, em abril de 1984, a rejeição da emenda que propunha a escolha do novo presidente pelo povo. Começava ai, de forma curiosa e inesperada, uma nova fase da História do Brasil.

Cássio Ribeiro

Críticas e sugestões: e-mail zzaapp@ig.com.br e Orkut http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=18423333339962056517

sábado, 5 de abril de 2008

ECOS E FLASHS DOS ANOS DE CHUMBO

O dia 1º de abril é considerado por muitos o dia da mentira. Essa data, porém, marcou para sempre a História do Brasil, em 1964. Nos 44 anos do Golpe Militar que depôs o presidente João Goulart, esta coluna fará em duas edições, uma viagem pelas causas e conseqüências dos violentos Anos de Chumbo; anos em que no Brasil foi abolido o direto democrático de pensar, de ter ideologia, de ir e vir. Todos eram culpados até que se provasse o contrário naqueles tempos.


As articulações que mais tarde resultariam na derrubada do presidente escolhido democraticamente pelo povo tiveram início uma década antes do golpe que os militares insistem em chamar de revolução, apesar de jamais terem ocorrido mudanças nas estruturas sociais e econômicas visando o bem do povo durante o movimento político-militar que originou a ditadura brasileira.


Em fevereiro de 1954, João Goulart era o ministro do trabalho de Getúlio Vargas e foi afastado por um manifesto assinado por coronéis, depois de aumentar o salário mínimo em 100%. As atitudes de Jango, como era popularmente conhecido, desagradaram os grandes empresários e os militares conservadores de alta patente. Os coronéis que assinaram o manifesto em 1954 eram os generais conspiradores, uma década depois, na fria e chuvosa madrugada do dia 1º de abril do outono de 1964.


Com a derrubada da República Velha, em 1930, o crescimento da industrialização brasileira produziu um significativo aumento da classe trabalhadora concentrada nos meios urbanos. O atendimento das reivindicações dessa massa trabalhadora, visando sua aproximação com o Estado, além do controle, da condução e da manipulação das aspirações dos operários, era o chamado Populismo.


O Populismo foi explorado politicamente por Getúlio Vargas, que o usava principalmente na ideologia de seu segundo mandato (1951-1954), para garantir a simpatia dos trabalhadores, mas também estimulava a oposição dos grandes empresários e dos militares e políticos conservadores, formadores da elite católica brasileira. Foi essa elite que conspirou para derrubar Vargas em 1954 e, como João Goulart era uma espécie de herdeiro político do populismo getulista, também foi destituído da Presidência em 1964.


A derrubada de Jango em 1954 e 1964 representava uma interrupção da política populista de Vargas, pela elite dominante brasileira

João Goulart chegou à Presidência da República depois que Jânio Quadros renunciou, em 1961, sem que nunca tenha ficado claro o motivo. O fato é que o Brasil havia se tornado aliado próximo dos Estados Unidos ao fim da 2ª Guerra Mundial, em 1945, e os comunistas brasileiros passaram a ser perseguidos desde então. O Partido Comunista Brasileiro foi classificado como fora da lei pelo governo brasileiro, que também rompeu as relações diplomáticas com a União Soviética.


Nos 7 meses do governo de Jânio Quadros, que durou de fevereiro até agosto de 1961, o Brasil reatou suas relações diplomáticas com o bloco comunista internacional da época, ao se reaproximar da União Soviética e do governo de Fidel Castro, em Cuba, o que desencadeou intensos protestos do governo norte-americano. Além disso, a elevação em 50% do imposto sobre as importações dos produtos norte-americanos, e sobre os investimentos dos lucros das companhias locais nos Estados Unidos, bloqueava parte da acumulação de capitais, indo de encontro aos interesses do imperialismo mundial e da classe dominante brasileira.



A polêmica figura de Jânio Quadros



A gota d’água que faltava para as pressões sobre o governo de Jânio Quadros chegarem a níveis insuportáveis foi a condecoração do guerrilheiro Ernesto Che Guevara com a medalha da Ordem Cruzeiro do Sul, oferecida por Jânio. Guevara foi, ao lado de Fidel Castro, o principal nome da Revolução Cubana, em 1959.


Condecoração de Enesto Che Guevara ...

Ato que despertou a ira da oposição conservadora

A condecoração dada ao revolucionário fez desabar uma tempestade oposicionista sobre o governo de Jânio, vinda do Congresso Nacional e da imprensa, liderada pelo jornalista Carlos Lacerda, então governador do estado da Guanabara. Lacerda, em rede nacional de TV, acusou Jânio Quadros de estar idealizando um regime igual ao de Cuba para o Brasil. Diante das pressões, Jânio Quadros renunciou na esperança de que, em função de sua popularidade, fosse recolocado no poder pelo povo brasileiro, fato que não aconteceu.

Para aonde vai Jânio Quadros? A famosa foto com o registro do ex-presidente após a renúncia

O sucessor legal de Jânio, previsto pela Constituição, era o vice-presidente João Goulart, que para 'piorar' ainda mais a situação, estava visitando a República Popular da China Comunista. A atuação política de Jango, além do cunho Populista herdado de Getúlio Vargas, era também identificada como comunista pelas forças conservadoras brasileiras; sendo que, na União Soviética, o nome de Jango era citado de forma simpática pelos jornais.


Alegando motivos de segurança nacional, os ministros militares não aceitavam João Goulart como presidente. Foi então promulgada a Emenda Constitucional número 4, onde o Parlamentarismo foi instituído como novo sistema de governo do Brasil, em 2 de setembro de 1961.


No Parlamentarismo, Jango seria apenas chefe de Estado, e o comando político do governo brasileiro ficaria a cargo de um primeiro-ministro e do Conselho de Ministros. Restava ao presidente apenas uma posição politicamente secundária no sistema parlamentarista adotado.


Jango buscou o apoio da opinião pública para a realização de um plebiscito onde o povo pudesse escolher entre os sistemas presidencialista e parlamentarista. Em abril de1963, o presidencialismo foi restabelecido pela escolha popular, numa proporção de 5 votos para 1 voto dado ao sistema parlamentarista.


Jango conseguiu finalmente o poder de um presidente da República, e logo pôs em prática as chamadas "Reformas de Base" (reforma administrativa, reforma fiscal, reforma agrária e reforma bancária), que junto com a taxa de inflação na casa dos 73,5%, em 1963, contribuíram para inflamar os ânimos dos que se opunham a João Goulart.
O Presidente João Goulart

As pressões sobre Jango vinham da elite conservadora católica, a mesma que colocara Getúlio Vargas no centro da crise que o levou ao suicídio, em agosto de 1954, e a mesma elite conservadora e neoliberal que vendeu o Brasil por meio de privatizações e, de quebra, ainda explora a massa pobre da população, impedindo por meio da manipulação da opinião pública através do domínio da grande mídia, a possibilidade de mudanças significativas no sistema econômico, social e educacional do Brasil atualmente.


Os pretextos que faltavam para o golpe contra a democracia brasileira ser deflagrado aconteceram em duas ocasiões bem claras. Primeiro, o comício realizado na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964; ocasião em que Jango assinou decretos de desapropriação de áreas improdutivas localizadas às margens de rodovias e ferrovias, e de nacionalização das refinarias de petróleo, além do monopólio do controle estatal sobre a importação desse produto. Naquela sexta-feira 13, Jango também deu um ultimato aos militares ultraconservadores: se tentassem deflagrar um golpe de Estado, enfrentariam a esquerda finalmente unida, pronta para o combate e apoiada na vontade do povo.

Jango ao lado da esposa Maria Teresa Goulart, durante o inflamado discurso ...

no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964

A outra ocasião decisiva para o execução do Golpe Militar aconteceu entre os dias 25 e 27 de março de 1964, quando 1200 marinheiros se reuniram no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, e saíram em passeata com quepes e golas virados para trás, na chamada Revolta dos Marinheiros. O governo de João Goulart apoiou os marinheiros e foi duramente criticado por oficiais das três forças armadas.


Em 30 de março, João Goulart discursou no Automóvel Clube do Rio de Janeiro para uma platéia de 2 mil sargentos; entre eles, muitos dos marinheiros revoltosos de alguns dias antes. Na ocasião, Jango também respondeu às críticas dos oficiais. O então senador Amaral Peixoto acompanhava as cenas pela TV de seu apartamento e disse em tom profético: "O Jango já não é presidente da República."


No dia seguinte, já na noite de 31 de março de 1964, o Golpe Militar começou em Juiz de Fora, Minas Gerais, sob o rótulo de movimento democrático contrário às ameaças comunistas. Os militares de Minas logo receberam apoio dos comandos do Exército em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio grane do Sul. Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, a "procissão" de tanques veio às ruas. O barulho das velhas lagartas que giravam movimentando os carros de combate se confundia com o som dos motores dos tanques e jipes verdes ocupados por soldados armados com grossos calibres. Parte da força naval dos Estados Unidos deslocou-se para a costa brasileira, a fim de apoiar os golpistas caso houvesse guerra civíl. Em caso de conflito, os americanos também estavam prontos para reconhecerem imediatamente o novo governo militar golpista.


Na noite do dia 31 de março e madrugada do dia 1º de abril de 1964, os tanques tomaram as ruas e ...


na manhã do dia 1º de abril, o cenário das capitais brasileiras era preenchido por carros de combate do Exército

No dia 1º de abril, João Goulart fugiu de Brasília para Porto Alegre, na tentativa de articular a resistência que jamais aconteceu. Jango percebeu como seus conselheiros militares e as chamadas "esquerdas radicais" estavam equivocados nas previsões relativas ao potencial de resistência. O povo brasileiro assistiu a tudo passivamente. A greve geral convocada pelo CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) no dia 30 de março não teve nenhuma adesão; trens e ônibus trafegaram normalmente durante todo o dia 31 de março. Ninguém esboçou a mínima resistência.


Jango estava sozinho e, já no dia 2 de abril de 1964, fugiu para o interior do Rio Grande do Sul, onde se refugiou em uma fazenda perto da fronteira com o Uruguai. Em 4 de abril, o já ex-presidente João Goulart pedia asilo político naquele país. Começavam assim, os anos de chumbo: duas décadas em que o cenário político brasileiro foi ocupado por uma das mais violentas e repressoras ditaduras militares da América Latina.

Segue o trecho de uma carta enviada do exílio por João Goulart aos brasileiros:


Dirijo-me ao povo brasileiro nesta hora de angústias e sofrimentos. Deposto por um golpe de força, observo, entristecido, cair a máscara do grupo militar que assaltou o poder. Instalaram um governo ficticiamente constitucional e, desde a quartelada, nenhuma medida a favor do país foi posta em prática, nenhuma perspectiva foi aberta pela ditadura para a solução dos graves e complexos problemas com que vem lutando o Brasil. Tudo o que tem feito parece revelar o deliberado propósito de agravar o sofrimento do povo. (...)



Os grupos estrangeiros possuidores de moeda forte gravitam em torno das empresas nacionais para adquiri-las a preços vis. E os industriais brasileiros acabam cedendo, com a agravante de deslocar para o exterior o fruto daquelas vendas, à falta de condições para nossos investimentos no Brasil. Temos, desse modo, o quadro desolador de desnacionalização e descapitalização do país .(...)


As reformas de base, preconizadas pelo meu governo e indispensáveis à demarragem de um país subdesenvolvido, são hoje apresentadas de forma caricatural por homens superados política e historicamente e que tentam empulhar a opinião pública brasileira, suficientemente esclarecida e politizada para não aceitar tais mistificações. (...)


Jango sendo fotografado pela esposa Maria Teresa, durante o isolamento político do exílio no Uruguai

Do exílio no Uruguai, Jango tentou inutilmente articular sua resistência política, até morrer de enfarte na Argentina, em 1976. Existem rumores de que Jango tenha sido assassinado por agentes da Operação Condor, que foi um intercâmbio entre ditaduras militares da América do Sul (Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai), apoiadas pela CIA (Agência Central de Inteligência do Estados Unidos), para aniquilarem seus opositores.


Na edição do jornal Folha de São Paulo, publicada em 27 de janeiro de 2008, foi publicada uma matéria com a declaração do ex-agente uruguaio Mario Neira Barreiro, onde ele afirma que João Goulart foi envenenado por ordem do então delegado do DOPS (Departamento da Ordem Política e Social), Sérgio Fleury. A autorização, segundo Neira, teria partido do presidente brasileiro na época, general Ernesto Geisel (1908-1996).

Cássio Ribeiro.