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domingo, 2 de março de 2008

O CAFÉ NA MORAL DA HISTÓRIA

A particularidade do princípio ativo estimulante da cafeína está presente no primeiro registro histórico conhecido sobre o café. Trata-se de uma lenda: estamos no século 6 da era cristã, há cerca de mil e quinhentos anos atrás, nas montanhas da Etiópia, no nordeste da África, onde vários arbustos repletos de pequenas frutinhas vermelhas crescem selvagens no meio das pastagens das ovelhas.

Um pastor chamado Kaldi começou a perceber que suas ovelhas ficavam saltitantes, loucas e felizes, parecendo "eletrificadas", todas as vezes em que comiam as tais frutinhas penduradas naqueles arbustos. O rebanho de ovelhas também demonstrava disposição para percorrer muitos quilômetros em íngremes terrenos, após a ingestão das tais frutinhas.

O pastor Kaldi decidiu então comer algumas daquelas frutas e ficou estimulado e agitado como seus animais. Um frade observara o fato e, classificando as frutinhas como "coisas do demônio", resolveu levar algumas delas para serem exorcizadas. Jogou-as na fogueira e, subitamente, um doce e inconfundível aroma tomou conta dos ares de seu monastério.

O frade, assustado com o ocorrido, despejou água sobre as frutinhas torradas. Pronto, acabava de ser preparado o primeiro cafezinho da história. A partir de então, o café seguiu uma longa saga histórica que o levou a tornar-se o mais popular e principal estimulante do sistema nervoso central consumido pela humanidade.


Os árabes dominaram, nos séculos 8 e 9, a região onde o café crescia selvagem em meio a vegetação natural, na atual Etiópia. Foram eles os primeiros bebedores, alterando o costume tão comum entre os pastores de ovelhas da região, que mascavam diretamente as já apreciadas frutinhas avermelhadas estimulantes.

Os árabes passaram a controlar de forma exclusiva o cultivo dos pés de café. Era proibido aos estrangeiros chegarem perto das plantações, que os árabes protegiam com a própria vida. As sementes ou grãos de café só eram comercializados com outros povos depois de estarem sem fertilidade, o que garantia aos árabes o monopólio da venda do produto tão apreciado no mundo conhecido da época. Uma lei árabe de 1475 garantia que qualquer mulher poderia pedir o divórcio, caso o marido não fosse capaz de dar-lhe uma certa quantidade de café todos os dias.

O próprio nome café tem origem na palavra árabe qahwa, que significa vinho. Sendo assim, o café ficou conhecido como o "vinho da arábia", quando chegou à Europa no século 14, por ocasião da invasão árabe naquele continente.

No século 17, o café já era consumido em larga escala na Europa, mas só os árabes vendiam o produto. Italianos, alemães e franceses tentavam sem sucesso, desenvolver o cultivo da planta do café.

Foram os holandeses que conseguiram desenvolver as primeiras mudas nas estufas do Jardim Botânico de Amsterdã. O café passava então, do cultivo ao consumo, a fazer parte da vida diária dos europeus. Outros países buscavam o desenvolvimento da técnica de plantio, a fim de obterem também os grandes lucros gerados pela comercialização do produto.


Artefatos holandeses utilizados na moagem e no preparo do café


Os franceses também conseguiram dominar o plantio, a partir de uma muda proveniente de Amsterdã. Logo, vários países europeus dominaram a técnica de produção do café e, com as descobertas de novas colônias na África e nas Américas por meio do desenvolvimento das navegações européias no século 15, o café chegou a Cuba, Porto Rico, Guianas e Suriname, de onde foi trazido para o Brasil.


O sargento-mor Francisco de Mello Palheta foi enviado ao Suriname com a incumbência de trazer a primeira muda de café para o Brasil. Palheta adquiriu a confiança da esposa do governador da Caiena, capital do Suriname, e recebeu dela clandestinamente, uma pequena muda da planta café arábica.

O brasileiro trouxe a pequenina planta para o Brasil escondida na bagagem. Chagava ao país, precisamente em Belém do Pará, no ano de 1727, a primeira muda do produto que revolucionaria a estrutura econômica colonial brasileira pouco tempo depois.

O café logo se espalhou pela Bahia, Maranhão, Rio de Janeiro, Paraná e São Paulo, pois as condições climáticas brasileiras proporcionavam o fácil desenvolvimento da planta. O produto passou a ser o símbolo principal da economia brasileira e seu cultivo foi realizado apenas com recursos nacionais, gerando riquezas de forma independente, a partir das plantações dentro do Brasil Colônia.

No final do século 18, o Haiti, que era colônia francesa e o principal produtor e exportador de café do mundo, foi arrasado pela crise gerada em função da guerra de independência contra a França. Foi a brecha para o Brasil aumentar a produção e a exportação do produto.

Durante todo o século 19, e boa parte do século 20, o café foi a grande riqueza absoluta brasileira, responsável pelo desenvolvimento do país e pela sua participação no comércio internacional.

Inicialmente, o norte do Paraná, o sul de Minas Gerais e a região do Vale do Paraíba Paulista foram os locais que mais se destacaram. No Vale do Rio Paraíba do Sul, em São Paulo, o café possibilitou o desenvolvimento de cidades como Guaratinguetá e Taubaté, além do surgimento de uma classe social extremamente rica, os barões do café, que traziam roupas e talheres importados da frança, e ergueram luxuosos casarões de fazenda. A ferrovia chegou em meados do século 19, dinamizando o escoamento e a exportação do chamado "ouro negro" brasileiro.

Nunca pode ser esquecido que toda a riqueza e a prosperidade ocorridas na economia brasileira
naquele período tiveram a participação essencial, significativa e principal dos negros escravos, que com sua força ao carregar os pesados sacos de café sobre a cabeça até os entrepostos ferroviários, e com sua pele lanhada e dilacerada pelo açoite das chibatas, garantiram a boa vida de uma classe econômica exploradora e parasita tão presente nos moldes da produção cafeeira daqueles tempos.

Casarão que pertenceu ao Barão de Guaratinguetá. Atualmente, o palácio abriga as instalações do Instituto de Educação, uma das escolas responsáveis pelo Ensino Médio na cidade

A imponência da arquitetura, como também o luxo usufruído pela aristocracia cafeeira paulista e brasileira...


foram proporcionados pelo suor e pelo sangue dos negros escravos. O sociólogo Darcy Ribeiro, já falecido, afirma em seu livro "O Povo Brasileiro" que o Brasil foi um imenso engenho de moer cana, café e negros.


A marca de café brasileiro mais conhecida na época foi a Santos. Muitas pessoas acham que o nome se referia à cidade de Santos/SP, porém, a marca Santos pertencia a família do célebre Alberto Santos Dumont que, além de ser considerado o pai da aviação, também foi um expressivo "barão" paulista cafeeiro. Outro conhecido representante da economia cafeeira paulista, e neto do Barão de Tremembé, foi o consagrado escritor de Taubaté, Monteiro Lobato. As terras do Vale do Paraíba Paulista, embora extremamente férteis no início da produção cafeeira na região, começaram a das sinas de esgotamento e escassez de nutrientes no final do século 19.

Monteiro Lobato retrata no livro "Cidades Mortas" o cenário do declínio do apogeu do café na região, que esvaziou economicamente cidades valeparaibanas paulistas, antes consideradas as mais ricas do Brasil nos tempos áureos do café, e que passaram à condição de meros centros turísticos algumas décadas depois.

Embora hoje o café não seja mais o principal produto da economia brasileira, o Brasil ainda é o maior produtor mundial de café. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), o Brasil é responsável por 30% do mercado internacional do café, que corresponde também à soma da produção dos outros seis maiores produtores mundiais (Colômbia, México, Guatemala, Indonésia, Vietnã e Costa do Marfim). O Brasil, onde 90% da população admira o cafezinho diário, é o segundo maior consumidor mundial do produto, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

Cássio Ribeiro. E-mail: zzaapp@ig.com.br

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